
CRÔNICAS DO ENDURANCE I: Travessia Torres-Tramandaí 2024
O quilômetro deveria ser algo próximo ao 30 quando vi uma menina na praia segurando um cartaz junto do que provavelmente era sua família.
“Você já é um vencedor” era o texto escrito.
Confesso que repeti a leitura, pois suspeitei que a mensagem deveria ser destinada para algum participante específico. Afinal de contas, seria um bom motivo para ir a uma praia quase deserta apoiar um ente querido em sua empreitada de 84km correndo pelas irregularidades do litoral norte gaúcho.
A segunda leitura confirmou a primeira: aquela menina estava ali em apoio a todos.
Comecei minha trajetória nos esportes de endurance com o ciclismo MTB XCM (cross-country maratona) por volta de 2017. Foram algumas participações naquele ano que revelaram que o universo das provas amadoras de resistência era meu “chão”.
Comecei participando da categoria “sport” do circuito de provas da Copa Soul de MTB. Esta copa era dividida em três faixas de dificuldade – a qual era determinada basicamente pela distância e altimetria enfrentadas: light, sport e pró.
Minha opção pela categoria intermediária logo de início se deu por conta de um raciocínio simples: a distância de cerca de 50km com 1.200m eu já havia feito em meus pedais de final de semana (na época eu não praticava o esporte com vistas à performance, sendo que meu uso da bicicleta era meramente recreativo e turístico). A “meta” competitiva seria simples: não chegar em último.
Consegui fazer a prova com muita dificuldade. Tudo era novidade e me senti imerso em uma energia nova. A competição que eu tinha me proposto era interna. Desafio pessoal mesmo com o motivador externo que mirava em não ser o último de minha categoria a cruzar a linha de chegada.
Atingi meu intento chegando em antepenúltimo!
Em uma segunda participação subi algumas posições no resultado final e vi que tinha “futuro” se treinasse e me dedicasse.
Em 2018 participei da mesma categoria e foquei em pedalar com mais vigor nos treinos, buscando baixar tempos e aprender o que podia com o amigo Régis, veterano do MTB Caxiense e pessoa incrivelmente aberta a incentivar e ensinar o que sabe.
O processo natural aconteceu: evoluí meu equipamento, que até então tinha se resumido a duas bicicletas de entrada aro 26, sendo que por bom período de tempo pedalei sem clipes com uma BOTA DE TREKKING (porque se eu tivesse que empurrar a bicicleta em algum trecho de terreno adverso, o conseguiria fazer por longas distâncias sem problemas, era meu raciocínio...) evoluíra para a antiga bicicleta do Régis, uma Caloi Elite Carbon que tinha em sua história muita quilometragem e conquistas.
Em 2019 adquiri uma bicicleta de estrada, a tradicional “speed” serviria para treinos de estímulos e rodagens e era uma forma de economizar dinheiro, uma vez que os custos de manutenção de uma MTB são maiores e a relação custo x benefício compensa.
Apesar de meu esporte de coração ser o MTB, minha primeira vez em um pódio foi com minha querida Caloi Strada em uma prova simulada realizada na Greentech pela equipe Squadra Caxias.
Após, vieram dois pódios na Copa Soul e uma posição que me alegrou muito no ranking final. Eu me sentia pronto para novos desafios.
A rigor, a trajetória “normal”, dado meu volume de treino semanal e experiência, seria ficar na categoria intermediária por mais um tempo. Contudo, a experiência que tive na Threerace de 2019 em São Francisco de Paula – prova de ULTRAMARATONA, onde a competição se desenrola em três etapas por três dias seguidos – revelou que minha busca e alegria nas competições não envolvia necessariamente vencer outros participantes. Minha busca seria vencer meus limites internos e superar o medo de encarar desafios que visivelmente estavam acima do que eu estava fisicamente apto a encarar.
A partir de então foquei em provas na categoria pró e em distâncias e altimetrias maiores. Os treinos aumentaram, a motivação redobrou.
Após a pandemia participei ao longo de 2021, 2023 e 2023 de diversos desafios. Encarei uma modalidade nova e que me exigiu um salto enorme em competências técnicas (digo enorme não por que hoje me considere extremamente hábil, mas sim por que perto do que eu era estou muito melhor!): o Cross-country olímpico (XCO) me trouxe aprendizado, evolução, autoconhecimento, e muitas cicatrizes, as quais me ensinaram sobre respeito ao processo e sobre meus limites e como os gerenciar.
O XCO entrou na minha vida por conta do incentivo do amigo Sérgio Mauri, outro veterano no MTB Caxiense que, junto com sua família, certamente faz história tirando uma legião de ciclistas de suas zonas de conforto e elevando o nível técnico da comunidade com sua pista construída em sua chácara e residência na localidade de Forqueta.
Muitas pessoas fizeram parte da minha trajetória no MTB e aprendi que apesar de ser um esporte cuja competição acontece solo (no máximo em dupla), a quantidade de aprendizado envolvida no processo impõe a superação da vaidade e a participação de inúmeras pessoas: treinadores, mecânicos, amigos, organizadores de prova, fotógrafos, socorristas (eu que o diga!) e, claro, adversários.
Tudo isso, bem como as horas, kms rodados de treino e CICATRIZES acumuladas ao longo dessa jornada vieram até mim quando li a frase no cartaz daquela pequena.
“Você já é um vencedor”.
Eu havia decidido competir a TTT no final de 2022. Naquele momento senti que precisava respirar novos ares e que as provas de MTB tinham atingido um certo patamar de previsibilidade.
Como disse, meu desafio é interno: chamo de “laboratório” esse hábito de buscar desafios que estão relativamente acima do que julgo ser capaz de fazer. Gosto de “testar” minhas hipóteses sobre mim mesmo e meu entendimento das questões humanas nestas ocasiões. Muito do que aprendi sobre ser uma pessoa melhor, mais calma, mais focada, determinada, resiliente e saudável (física e mentalmente) veio destas experiências. Cada “Tiago” que passou por uma linha de chegada estava um pouco melhor do que o Tiago da linha de largada.
Ao longo de 2023 fiz uma preparação por conta própria. Eu mesmo pesquisei insights sobre treino, nutrição e recuperação. Resolvi algumas “ítes” (duas canelites e um início de pubalgia) que parecem ser inerentes ao processo de preparação na corrida.
Eu sei que o processo “correto” e adequado é diferente e envolve uma preparação maior. Eu pretendia fazer a peripécia de ser uma ULTRAMARATONISTA sem nunca ter corrido uma MARATONA.
É claro que a distância de 42k em algum momento foi atingida na preparação feita. Mas eu pretendia saltar de um máximo de 25km corridos em algum dia de meu passado, para algo próximo a 84km em um prazo curto. Os “testes” em provas foram relativamente poucos e AINDA não corri uma prova de maratona.
Este processo não foi completamente “impensado”. Existe certo método nesta aparente maluquice: minhas experiências no MTB eram minha base. Além disso, tenho experiência com trekking e algumas “indiadas” que me tiraram da minha zona de conforto e me permitiram lapidar um mental relativamente resiliente.
Eu usaria um ano de treino de corrida e absolutamente TUDO que havia aprendido sobre mim mesmo em minha tentativa de completar a TTT 2024. E tudo isso seria usado ao limite!
“Você já é um vencedor”.
Até aquele momento eu estava imerso em minha vaidade. Havia feito um planejamento que iria se revelar utópico para meu preparo e inexperiência. Afinal de contas, correr na areia não é o mesmo que correr em um asfalto retinho e regular.
Eu havia feito um “intensivo” de treinos que começara em novembro e foi subindo até a semana anterior à prova. Neste processo o máximo que eu havia corrido era 50km e meu melhor tempo nesta distância havia sido atingido no domingo anterior ao sábado da prova.
Foi um pace muito menor do que eu havia entregue nos dois treinos longos anteriores. E, sim, isso era tudo. Em momento algum eu havia passado a distância de 50km contínuos.
Apesar de ter coberto a distância de 87km na Gringos Backyard em meados de 2023, este feito meio que não resolve a questão, dado que a dinâmica de uma backyard é completamente diferente de uma prova contínua.
Aquele cartaz jogou meu foco pra dentro.
Reduzi o pace, senti uma forte emoção que me levou às lágrimas.
Eu havia sentido algo desta ordem em algumas oportunidades em provas de MTB. Aquelas que você termina dizendo “ok, esta foi a mais difícil que encarei até hoje!”. Trata-se de uma verdadeira inundação de sentimentos bons, alegria e PAZ. Um tunelamento da visão coloca teu foco em uma catarse densa de memórias e sentimentos. De repente o que chamamos de “sentido” está ali, na tua frente e você pacifica sua mente.
Isso foi no km 30. Faltavam mais de 50.
Brinquei dizendo que faria a TTT "solo-solo", dado que a prova permite um apoio de bicicleta ao longo do percurso. Eu me propus a encarar o desafio sem este recurso.
Contudo, apesar de estar somente eu e minha mochila lá, junto estavam todas as pessoas que mencionei aqui bem como outras tantas que me ajudaram com ideias, apoio, carinho, dicas... Estavam os demais participantes que incentivavam uns aos outros conforme a prova avançava e ficava cada vez mais dura. Estavam os fotógrafos que nos incentivávamos a caprichar na postura, estavam os banhistas que admiravam aquele show de superação e estava aquela menina com seu cartaz.
Sim, eu já era um vencedor.
Venci uma depressão severa que anos atrás havia me levado ao fundo de um poço terrível. Venci / venço um TDAH que me faz voltar para pegar algo que esqueci todo dia e que me causa uma insegurança constante e a necessidade de autovigilância. Venci a timidez de um nerd que mal conseguia atender um telefone sem ver o coração disparar, venci o medo... aquele que acompanha todos nós e que nos faz pensar todo dia sobre o que estamos fazendo de nossas vidas mesmo que saibamos que estas não são eternas e que talvez pouco importe o que escolhemos como caminho.
Os esportes de endurance são minha escola, meu laboratório, meu templo, onde cultuo a resiliência, o amor, o respeito e a paz. O MTB e a corrida andam juntos e lapidam meu ser.
O km era o 50. A partir daquele momento tudo seria novo. Decidi parar, me alongar um pouco, comer e trocar minhas meias (Lili... tua dica sobre as batatas foi incrível! A meia não precisaria ser trocada, MAS, acho que ter uma meia seca de reserva não faz mal!). Um gole generoso no “elixir do endurance”, cuja fórmula de autoria do mestre Alexandre Silvestrin (Palatinose mais Energy Kick DUX) serviu de combustível para encarar com energia a prova.
Conforme fui avançando meu pace caiu, comecei a caminhar em alguns momentos dada a fatiga. Eu estava com uma atitude conservadora e de respeito à prova, dado que tudo ali era novo.
Uma coisa engraçada acontece na corrida: muito se fala sobre a “parede” do km 30. Senti isso nos treinos e de certa forma aprendi a lidar com o fenômeno. O que aprendi é que depois do 50, esse baque volta cada vez em um espaço menor de tempo. Aprendi também que existe um fenômeno de recuperação repentina que pode iludir e levar o corredor a imprimir um ritmo que o levará a quebra: “do nada” tu te sente bem e a vontade de atacar a prova a fim de compensar a queda de vigor invade o corpo. Neste momento moderação e sabedoria são fundamentais, pois uma coisa que é certa é que ali na frente várias paredes te esperam, uma cada vez mais próxima da outra.
O km 70 foi um portal. Eu não estava com nenhuma dor muscular incapacitante, nada de câimbras. Mas o cansaço era grande. Um tipo diferente e novo de fatiga invadia meu corpo. Senti a paz e alegria se esvaírem e lá do fundo uma voz que bem conheço e que fora calada pelo cartaz de menina retomava seu discurso.
Acho que não tem como se livrar do ego e vaidade. Eles são subproduto do medo e, bom, sentir medo é algo natural de todo ser humano. Estas coisas são indissociáveis e aparentemente nos acompanharão sempre.
Senti uma inquietação causada pelo desconforto físico, silenciosamente o medo movia suas forças e conquistava terreno em minha mente.
Eu não confiava mais na distância marcada no Strava de meu celular – dispositivo que tenho usado para mensurar treinos e provas – dado que eu tinha optado por uma estratégia que me levara a não seguir uma linha estritamente reta ao longo do trajeto.
Durante os treinos eu senti forte desconforto no tensor da fáscia lata o que presumi se dever a inclinação do terreno e a falta de reforço muscular suficiente para longas distâncias. Então optei por evitar a beira da praia, onde o terreno é mais inclinado e foquei em correr mais pra cima, onde é mais plano. Contudo, a ocorrência de areia fofa nesta parte da praia é maior, o que te leva a uma quantidade maior de desvios que se somam e, ao longo de 84km, estes pequenos metros a mais viraram mais de um km.
Eu não sabia quanto que faltava para a prova terminar, mas dava para ver ao longe os prédios de Tramandaí e uma pequena silhueta denunciava os molhes que marcavam o final da prova.
Contudo, tive uma experiência que me ensinou sobre distâncias e horizonte no litoral. Atravessei com um amigo e seu filho (salve, Espetinho!) a praia do Cassino a pé no final de 2019 e aprendi que o fato de você ver algo no litoral não significa que ele está próximo.
Alguns apoios da prova estavam voltando e procurando incentivar os participantes. Isso, mais a distância que eu tinha em meu celular, denunciavam que o fim estava “próximo”.
“Bora que faltam 2,8km”, falou uma moça de bicicleta que vinha em sentido contrário.
Somei esta distância ao que tinha registrado e o resultado batia nos 84km.
“Será que os desvios não impactaram tanto?”
“Será que deu algum erro no app?”
O medo lançava hipóteses e não tardou pra coisa complicar: “boraaaa... falta só 3km!”. Disse alguém mais para frente.
“Eu estou correndo para o lado errado, só pode!” Pensei...
Nesta altura, percebi que não dava pra confiar no que a galera falava, pois no intento de motivar, talvez as distâncias eram propostas meio que aleatoriamente com a intenção de fazer parecer “pouco”.
SÓ QUE... 1km, 2km, 3km não são a mesma coisa depois de se correr 80km. Cada METRO importa nesta altura!
Passaram-se alguns minutos e fui alcançado pela Bruninha, da Ciclotime, professora que treina galera de bike e corrida e amiga de longa data. Ela estava como apoio para uma aluna.
“Bru... quanto tu tem aí no GPS?”
“81km... bora que falta pouco!”
Ri da situação. “Falta 3km faz uns 20!”, pensei.
Confiei na distância e fiz meus cálculos. Seria dolorido (eu já havia visitado uma quantidade imensa de “quartos” novos no porão da minha mente) mas eu iria conseguir.
Não era o tempo que eu tinha almejado no início (abaixo de 8h30m) mas era dentro do que eu havia estipulado como um cenário “realista pessimista”.
Tenho uma graduação de expectativas que aprendi com as provas de MTB: Muito Otimista – Otimista/Realista – Realista – Realista/Pessimista – Muito Pessimista e DNF. Até hoje meu único DNF foi por conta de um acidente que me fez contar com o suporte dos socorristas da prova em uma das etapas da Copa Soul em 2021.
Pra mim, qualquer coisa abaixo do DNF é vitória. Então... mesmo que cobrisse os 3km caminhando, seria tudo muito recompensador.
Contudo, o ego e a vaidade, ingredientes do suquinho que sai quando o medo espreme-se em seu interior, estavam ditando meus pensamentos. Senti uma ponta de frustração por não conseguir o que pretendia lá nos meus sonhos da linha de largada. Senti que a dor aumentou e nuvens obscuras nublaram minha mente.
“NÃO CHEGA NUNCA!”
Esse pensamento ecoou alto dentro de mim.
Claramente, as tropas de phobos, o medo, estavam ganhando terreno na batalha por meu psicológico. Senti que este avanço estava obscurecendo meu julgamento.
“QUANDO, CHEGAR, TU VAI SABER, TIAGO. AGORA CALA A BOCA E CORRE. DEU DE LADAIA!”
Essa voz interna soou alto e colocou as coisas no lugar. Coincidência ou não, neste momento o tempo levemente nublado cedia espaço para um Sol lindo de ver. Guarda-sóis começavam a se acumular e definitivamente os molhes se aproximaram.
Alguns minutos e lá estava ela. A chegada!
9h07m17s. 90mil passos. 84k390m.
51º/128 colocado na geral. 15º/36 colocado na categoria.
Os números dão uma dimensão parcial do que conquistei. Este relato todo outra boa parte... Quanto ao restante do que vivi/aprendi somente eu tenho acesso e posso dizer que tudo está embedido em alegria e satisfação. Afinal de contas, no endurance existem duas vitórias: a externa, do pódio e troféu, e a interna, silenciosa, que somente quem a vive e sente sabe o que é, pois, só pelo fato de estar nesta jornada, encarando o medo no fundo de seus assustadores olhos com coragem e determinação garante que...
VOCÊ JÁ É UM VENCEDOR!